Jornal Nacional: história, memória e pandemia
Viralizaram nas redes sociais as falas de abertura do Jornal Nacional de 20 de junho de 2020. Em críticas dirigidas ao presidente da nação, Jair Bolsonaro, o apresentador William Bonner afirmou: “a História vai registrar aqueles que se omitiram, os que foram negligentes, os que foram desrespeitosos. A História atribui glória e atribui desonra”, referindo-se à condução desastrosa da atual pandemia por parte do governo federal, em um momento em que o país chegou a cinquenta mil mortos por COVID-19 e a mais de um milhão de casos da doença. A apresentadora Renata Vasconcelos também comentou na mesma edição: “Tudo isso vai passar. Quando passar, é a História, com “H” maiúsculo, que vai contar para as gerações futuras o que de fato aconteceu. A História vai registrar o trabalho valoroso de todos aqueles que fizeram de tudo para combater a pandemia. Os profissionais de saúde em primeiro lugar”.
Embora aclamado por muitos, o discurso dos apresentadores leva a questionamentos sobre as formas como as narrativas históricas são produzidas. Sozinha, a “História” não atribui glória ou desonra a ninguém. Essa substantivação da História, além de perigosa, é também ingênua, uma vez que admite que, naturalmente, os responsáveis pela tragédia que vivemos necessariamente culpabilizados e lembrados como tais. A História é representada pela musa grega Clio, filha de Mnemosine, que é justamente a memória. Embora a História, como filha da memória, esteja por isso ligada a ela, o que o discurso dos apresentadores do Jornal Nacional desconsidera é que a História, por si, não é um sujeito capaz de produzir narrativas, já que é uma categoria abstrata. Os historiadores, estes sim, precisam ser constantemente lembrados. É do seu engajamento na construção e defesa de suas narrativas, pautadas em pesquisas amparadas em uma ética própria de seu ofício, que se põe em evidência a complexidade das relações sociais, colocando cada coisa em seu devido lugar. Muito mais que juízes, condenando alguns e glorificando outros, o historiador é quem, ao desvelar a teia por trás dos processos históricos, atribui um dado significado a eles e, com isso, ao presente do qual participa.
A teleologia de Bonner desconsidera que junto ao fazer historiográfico se imiscuem diversas outras condicionantes externas a ele, que são de natureza múltipla, como interesses econômicos, políticos e até mesmo sociais, as quais influenciam na aceitação e produção das narrativas sobre o passado. O papel da História não é o de senhora onisciente, mas ela mesma, enquanto narrativa, encontra-se permanentemente em disputa e são os historiadores profissionais que, engajando-se nessa luta, contribuem para que venha à tona uma visão equilibrada dos fatos, fruto de seus trabalhos de pesquisa. A História, em si, não deixa registrados automaticamente os negligentes, atirando-os à lata do lixo, premiando os heróis. Ela é um misto de condicionantes externas com a agência do historiador, atento às questões que envolvem o seu próprio tempo. A aceitação desse discurso também está sujeita a forças maiores que a própria academia, onde esses saberes são produzidos. Em um contexto de negacionismo científico e ataques às ciências humanas como saberes de segunda linha, bem como da profusão de fake news e rejeição dos profissionais da História (vide o veto presidencial ao PLS n. 368 de 2009, que regulamentaria a profissão de historiador), é de se questionar se o discurso hegemônico que existirá em nosso futuro será, realmente, o de relegar a Jair Bolsonaro o papel do carrasco que conduziu a população à morte, como tão categoricamente afirmou William Bonner, e de rememorar gloriosamente os profissionais de saúde, como afirmou Renata Vasconcelos. A ver.
Maria Thereza David João é doutora em História Social e professora da área de Linguagens e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter
Mariana Bonat Trevisan é doutora em História Social e professora da área de Linguagens e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter